Adaptação de consistência alimentar
A adaptação de consistência alimentar é uma realidade comum a classe fonoaudiológica. Tornar o alimento seguro para ingestão dos nossos pacientes, faz parte do trabalho no atendimento domiciliar.
Mas adaptar consistência é somente “bater” o alimento?
Em tempos de pandemia, de reclusão e de distanciamento social, o processo de alimentação tem seu papel cada vez mais destacado. A alimentação nos remete prazeres, memórias e transborda nosso coração.
Necessidade de envolvimento no momento da retomada da via oral
Manter o idoso com uma via oral segura, livre de riscos que o levem a internações inclusive, é nosso foco principal hoje e sempre. O processo de deglutição, para uma perfeita realização, precisa que todas as estruturas envolvidas neste processo, estejam em perfeita harmonia (grosseiramente falando).
A Fonoaudiologia tem uma atribuição primordial nesta conquista quando estimula a atividade muscular, a função; e desta forma mantém o prazer e a memória alimentar deste idoso.
Em minha prática profissional, auxilio inclusive a confecção deste alimento com demonstrações e exemplificações de preparo alimentar. Alimento que dá vontade de comer é aquele que comemos com os sentidos associados. Olfato e visão, antes do paladar propriamente dito.
Pacientes em alimentação exclusiva por gastrostomia (GTT) não possuem a necessidade de alimentação via oral como fator de sobrevivência. Com alimentação industrial eles estão nutridos, hidratados… a fome e o prazer da alimentação vão se perdendo em meio à tantas outras perdas funcionais. Surge aí a necessidade da criatividade terapêutica para engajar equipe assistencial , família e paciente; na busca desta retomada com sucesso.
Abaixo o relato de caso de M.V.F, uma paciente que em meio a uma conversa sobre festa junina veio a tona a memória gustativa e, nos fez um pedido que nos fez pensar em estratégias criativas para atendê-la.
M.V.F – uma idosa surpreendente
MVF – 88 anos com sequelas de AVC hemorrágico associado à um processo demencial em curso. Disfágica e Afásica. Vem se alimentando exclusivamente por GTT desde o momento em que sacou sua sonda naso estética (SNE) em sua última internação. Pediu para comer canjica quando falávamos sobre festas juninas.”
A hospitalização
A internação se deu por suspeita de COVID 19. M, ficou em um CTI, sem que sua filha pudesse estar a seu lado. As sequelas do AVC sofrido por M, se misturam ao processo demencial em curso. E a confecção da GTT, se deu de forma precoce em função do momento pandêmico que vivemos. O objetivo era a desospitalização acelerada
O retorno ao lar
Há cerca de 45 dias retornou para sua casa e iniciamos a fonoterapia. M, tem apresentado evolução significativa quanto ao trabalho muscular desenvolvido para restabelecimento de sua alimentação por via oral. O prazer do paladar vem retornando.
Seu pedido: uma surpresa!
É de suma importância, darmos voz às solicitações alimentares da paciente. O pedido para comer canjica foi inicialmente assustador. É um alimento com grãos e líquido misturados. Os grãos ainda não estão no foco da terapia (M não possui prótese adaptada para uma mastigação eficiente, em função do emagrecimento sofrido na internação), e o líquido associado faz com que a consistência dupla promova mais dificuldades à paciente.
Neste momento surge a ideia de adaptar o alimento solicitado.
Partindo do princípio de que estamos associando os sentidos (visão, olfato e paladar), desenvolvemos uma estratégia
O preparo
- Grãos cozidos acima do necessário para uma fácil trituração posterior;
- Processamento da canjica já pronta. Fomos medindo a quantidade de grãos em meio ao caldo na hora do processamento, para atingir a consistência segura para ingestão de M.
- Finalização no utensílio para servir com aquele toque visual. Bandeja arrumada, canela polvilhada por cima, guardanapo ao lado…
O prazer em mão dupla: paciente & terapeuta
M, apreciou com os olhos, se inebriou com o aroma e finalizou o processo de alimentação com a ingestão do alimento de desejo. O fato de estar processado, acabou sendo o menos relevante pois atingimos o objetivo com os marcadores de pré-ingestão.
Adriane Gama – Fonoaudióloga – Crfa 9531 – RJ
Atua na equipe Geriatre com atendimentos no consultório e no domicílio